terça-feira, 3 de março de 2009

primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

para quem possa vir a escutar estas letras, esta será a primeira de cem tentativas para chegar ao mesmo sítio que serão diáriamente aqui reveladas ...



1.

Estudos sobre a música



Primeiro Estudo


No quarto, o tempo não continuava. O tempo, estagnado, optava por assobiar enquanto assistia. Um homem enforcado lá dentro, mais precisamente dentro do armário, e estava quase a ser analisado como alguém que desistiu da própria vida. Embora, verdade seja dita, o morto – quando vivo – preferisse ser reconhecido como homem dos tempos em que respirava: alguém que conquistara a própria morte com bravura.
O cheiro a podre enjoava a respiração e entupia as narinas. Havia um ar pesado, um nevoeiro que caminhava lentamente e que fugia para o exterior. A confusão era desnecessária; os fantasmas riam-se das almas, e as almas não paravam de rezar. A confusão é transparente, no mundo dos mortos, embora esteja empestada de poluição, anunciava uma das almas menos elegantes que, irritada, tentava insultar um fantasma que tinha acabado de cuspir para o chão.

Só pode ser música, o que está escrito nas veias do morto, disse o primeiro pianista dois segundos antes.
A cabeça não tem nem um pingo de sangue, não tem cor, disse o segundo pianista.
É música e da boa, avançou o primeiro pianista, enquanto segurava num dos braços inertes e lia as notas musicais que tinham aparecido na superfície da pele do morto.
Tinha a música no sangue, este coitado, não o podemos negar.
É claramente uma ópera, o que aparece ao longo das veias.
BRILHANTE, BRILHANTE, a perna esquerda é uma composição para violino, BRILHANTE.

Duas horas antes, dois bombeiros entraram à força no quarto, rebentando a porta.
Depois entraram dois médicos que conversavam sobre quem tinha sido o último a pagar o pequeno-almoço; os médicos repararam que já não existia porta, esse trabalho tinha sido realizado pelos bombeiros.
Dois investigadores entraram num passo curto, era um caso simples de resolver, tinham a certeza de que o homem estava morto, esse trabalho tinha sido realizado pelos médicos.
Dois pianistas entraram apressados no quarto, foram chamados de urgência, era um caso de suicídio, e esse trabalho tinha sido realizado pelos investigadores: o enforcado tinha uma composição musical nas várias veias que sobressaíam na epiderme.

Dois dias antes, Kremer decidiu avançar com o pé esquerdo, era canhoto desde que nascera. O corpo caiu. A corda esticou com o peso da queda. Ouviu-se um som forte e seco (craque). O som vinha de duas vértebras do pescoço, que se tinham separado. Os braços foram-se abaixo. A cabeça inclinou-se para cima. Os olhos fecharam-se. A língua engrossou e saiu para fora. O tronco tremeu por instantes. As pernas sacudiram os pés meia dúzia de vezes. Depois os membros pararam brutalmente de intervir. O corpo ficou doze minutos a baloiçar, suspenso, só. Pontualmente só.

Dois dias e dois minutos antes, estava tudo pronto dentro do armário. Por enquanto a morte estava aborrecida. A morte tinha-se sentado fazia dez dias e poucos movimentos tinha exercido sobre as pernas. Levantou-se três vezes, a morte, desde a primeira tentativa. A morte ofereceu apoio com uma das mãos a Kremer, porque o armário era alto e tinha as portas altas. Era essa a sua função: ajudá-lo a entrar para dentro do armário. A morte sorria enquanto isto acontecia. A morte era uma víbora, uma serpente muito parecida a uma forca. A morte não se movia, aparentemente. A morte atingia a rapidez invisível. A morte era uma puta, fodia com todos os cadáveres que queriam voltar a viver por um dia e depois cuspia os ossos desses cadáveres pelas narinas e pelo ânus.

Duas semanas antes, Kremer abriu a última carta, esta maior que a anterior e maior que todas os outras que tinha analisado. Apontou o dedo indicador, que tremia. Seria a última tentativa, já estava decidido. A corda estava pendurada dentro do armário. O armário estava limpo de tralha para ele caber lá dentro e para a corda caber no seu pescoço. A única coisa que faltava era o seu corpo; depois era só colocar-se em cima de um banco, envolver-se no pescoço, com a corda previamente içada, e deixar-se cair. Desdobrou a carta e leu: infelizmente devo anunciar que não apreciei a sua obra, como tal não vai ser possível editá-la.

Dois anos antes, Kremer tinha-se fechado no quarto, quase às escuras, e escrevera uma ópera.



autor: Rui Almeida Paiva

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